Eu não tenho muito o que fazer, isso é fato. Se eu tivesse, talvez não estivesse sentada na recepção de uma faculdade em que eu não estudo só pra observar o movimento das pessoas passando. Tá, não era só por isso. Enquanto eu memorizava a posição de cada uma das rachaduras do pirulito de coração na minha boca, também me concentrava no cara loiro encostado numa parede que eu podia ver através das portas de vidro da recepção.
Eu não sou escrava dos estereótipos de beleza: para que eu me sinta atraída por alguém, a pessoa não tem que parecer necessariamente com um ator qualquer de uma série qualquer que passe em um canal-fechado-de-gente-rica qualquer. Logo, o fato desse cara ser loiro, ter olhos claros e um corpo legal não era um fator determinante para a minha atração. Normalmente. Mas esse cara tinha algo de especial - talvez a cara de tímido, talvez o aparelho fixo nos dentes, ou então a pulseirinha de palha no pulso. Resumindo, pela primeira vez, me atraí por alguém só pela aparência (apesar da cor do cabelo não influenciar muito. Essa homogeneidade de gostos femininos - loiro = gato - nunca fez sentido pra mim, sempre tive o cabelo loiro e nunca me senti mais que uma menina sardenta e orelhuda por causa disso).
O cara loiro desconhecido - o chamarei por enquanto de Sherlock, para evitar repetições - estava esperando sua aula começar. Eu sabia disso porque nos últimos três dias ele subiu as escadas indicadas com uma placa "SALAS DE AULA" assim que o relógio marcou 15:55 - o que eu imagino que seja porque ele leve cerca de cinco minutos para se deslocar até a sala de aula e sentar-se antes que a aula comece. Em dois minutos, sua rotina provavelmente se repetiria. Eu parei de contar as rachaduras do pirulito - por enquanto, doze - e dediquei toda a minha atenção a Sherlock. Em dois minutos ele sairia dali e eu teria tempo pra me concentrar em coisas menos importantes.
Depois de dois minutos, eu direcionei minha atenção a algo que eu descobri não ser menos importante que Sherlock, mas que não necessariamente me trazia muitas alegrias. Numa das últimas folhas do meu caderno, rabisquei um diagrama para analisar a probabilidade de Sherlock estar tão atraído por mim quanto eu estou por ele. Bem. Ele pode ser gay. Ou pode ser hétero mas ter namorada. Ou pode ser hétero e não ser a fim de mim. Ou pode ser a fim de mim - altamente improvável. Ou, ainda, pode simplesmente nunca ter reparado em mim e portanto não ter uma opinião exata - o que, baseando-me em experiências anteriores, tem mais probabilidade de acontecer. Juntei minhas coisas, dei tchauzinho pra moça da recepção (que a essa altura já sacou o que eu vou fazer lá todas as tardes no mesmo horário) e saltitei para casa - porque andar é para os comuns.
Em casa, depois de dar Oi pra papai, tirar o sapato e lavar as mãos duas vezes, encontrei mais uma vez nas redes sociais a Decepção. Dessa vez, não foi nenhum protesto ridículo sobre o chat que parou de funcionar, nem tirinhas do xkcd.com traduzidas e postadas - descaradamente e sem crédito nenhum ao autor original - em perfis de humor. Foi pior. Foi o horror. O HORROR. Na minha página de "Sugestões de amigos", lá estava Sherlock - com seu nome verdadeiro. E uma foto dele, de regatinha, mostrando o "muque" e segurando uma latinha de cerveja.
Ignorei minha ânsia de vômito e tentei saber mais sobre essa criatura que de repente não me pareceu tão atraente.
Vamos, Sarah, não julgue as pessoas só pelas aparências, era o que a minha mente me dizia, mas era um comando impossível de ser executado: o perfil dele não estava completamente visível para desconhecidos, me deixando apenas com a sua foto do perfil e as informações "Solteiro" e "Música: Chiclete Com Banana" para traçar um perfil psicológico. Isso não me agradava nem um pouco e eu seria forçada a fazer testes com Sherlock - usar esse nome ao invés do verdadeiro ainda me dava alguma esperança - para descobrir se ele ainda tinha salvação.
No dia seguinte, às 15:50, eu saí do meu lugar de costume, no sofá da recepção da faculdade, e fui até Sherlock. Ele me olhou de forma estranha (não sei se foi a minha camisa com a estampa de um gato morto-vivo ou se ele estava espantado porque estava secretamente apaixonado por mim e não esperava que eu fosse toda linda e glamourosamente andar até ele) e eu tirei da minha bolsa duas unidades do melhor determinante de personalidade já inventado.
"Quer um Nesquik de morango?", eu perguntei enquanto começava a beber o meu.
"Não, valeu, vai que algum conhecido me vê bebendo isso?"
Ele rejeitou o Nesquik. Ele deu um tapa na cara da sociedade dos bebedores de Nesquik e não merecia a minha atenção. A vergonha de segurar uma caixinha de Nesquik em público mostrava que ele era exatamente o tipo de pessoa que eu prefiro evitar: aquele que liga mais para as opiniões dos outros e para o que é mais socialmente aceito e que o caracteriza como "Machão Pegador".
Adeus, Sherlock.